Cecilia Galvani* com a colaboração de Sandra Rocha do Nascimento, Sandra Mônica Silva Schwarzstein e Maria Izilda M.O.

colcha de retalhos

“O conhecimento não é algo que as pessoas possuem em algum lugar dentro da cabeça, mas sim algo que as pessoas fazem juntas” (Kenneth J. Gergen, 1985).

Diante de uma demanda antiga de mensurar o impacto da atuação do Instituto Lina Galvani (ILG), em propostas de Desenvolvimento Comunitário (DC), no fim de 2013 desenhamos um projeto que tinha como objetivo a utilização de métricas e indicadores relacionados com o propósito de uma apreensão mais real possível dos impactos gerados pelo ILG. A partir da formação em Práticas Colaborativas e Dialógicas, certificada pelo Houston Galveston Institute e pelo Taos Institute, em que conheci a Investigação Apreciativa e a Poética Social, uma nova proposta de avaliação começa a nascer na busca por um processo que também fosse útil e generativo para os envolvidos. Sem abrir mão da avaliação empírica e no exercício de deixar pra traz o mito da modernidade, agreguei uma nova perspectiva à proposta, embarcando numa viagem dinâmica rumo à complexidade das relações comunitárias de Angico dos Dias (BA), certa de que encontraria ótimas conversas, além de bons resultados.

Roda de Conversa – uma prática dialógica

Com base nos direcionadores da Investigação Apreciativa (IA) Relacional e Colaborativa, Útil e Generativa, Orgânica e Dinâmica, Complexidade e Multiplicidade e tendo como pano de fundo duas questões, parte dos Indicadores de DC desenhados pela equipe do ILG foram escolhidos para provocar a conversa, realizando alguns “ajustes” de nomenclatura para deixá-los mais acessíveis, solicitando ao grupo que fizesse um exercício de relembrar o “antes” (da atuação do ILG) e o “agora” (depois): (1) Como minha prática no território pode ser vista como pesquisa? (2) Como posso envolver os princípios da pesquisa para fortalecer meu trabalho?

O convite para os moradores locais, em torno de 40 pessoas, foi para uma roda de conversa com o propósito de avaliarmos juntos (ILG e comunidade) o trabalho que vimos realizando ao longo desses seis anos – desde o início das atividades do ILG no território. Num clima de colaboração e festivo, iniciamos a roda de conversa, com uma apresentação de boas-vindas recheada por sentimentos e expressões de felicidade e satisfação diante dos três anos da criação da Rede Social, anos de luta e conquistas de melhorias para a região.

Muito se tinha a comemorar e aquele encontro configurou-se como uma excelente oportunidade para recordar, emocionar-se, agradecer e também construir novos sentidos sobre si mesmos, sobre a Rede e a comunidade. Abaixo descrevo alguns momento marcantes, na tentativa de traduzir um pouco da riqueza desse encontro, apresentando as falas das pessoas da comunidade intercaladas com nossas próprias vozes, sobre alguns indicadores.

O primeiro Indicador que foi sugerido para discussão, foi Confiança. Alguns responderam que, comparando o “antes” com o “agora” “talvez não tenha mudado muito”. Jorene, professora e liderança da localidade, afirma que o que havia mudado seria a consciência de que pra você conseguir ajuda tem que se abrir e procurar e que isso é algo aprendido. Ainda fala: “Nós já temos o histórico de união muito forte, mas eu acho que agora nós aprendemos a procurar ajuda. Aprendemos a nos abrirmos mais, para que outras pessoas conheçam nossas dificuldades e possam nos ajudar”. Com o olhar ainda atento para os aprendizados resultantes desses exercícios de conversações, me esforço para escutar a voz do S. Salvador: “Vai indo, a pessoa aprende até a falar”. E eu pergunto: – “E o que vocês acham que contribuiu pra isso?”, ouvindo “Um grupo desses ajuda muito. Mantemos contato, um fica sabendo da situação do outro e as pessoas aprenderam a se juntar”, pontua Jorene, alimentando minha convicção da importância de espaços como esses, para o fortalecimento das capacidades locais.

E isso já nos remete para outro Indicador, o Ampliação do Repertório Local. Lembro-me então da fala da Graciela, mulher de rosto forte e angulado e de perfil empreendedor: “Esses tempos teve a questão da água, que tinha quebrado a bomba, aí teve um monte de gente que foi lá em casa (…) eu sei que a gente foi espalhando um pro outro e aí, daqui a pouco, a bomba já tava arrumada”. Casos de pessoas que superaram dificuldades individuais, também foram lembrados: “Um exemplo é o Sr. Benjamim, ele era doente, tinha depressão…e hoje, quando vou verificar a pressão – antes sempre 22 x 13, hoje ele já consegue controlar. Ele não saía de casa e hoje ele dança.”, exaltou feliz a enfermeira Solimar e idealizadora do Projeto Diversão não tem idade, voltado para o trabalho preventivo de hipertensão e diabetes. Dona Valdemar, recém ingressada na Rede, emendou: “Faz um ano que tô participando da Flor do Sertão aqui na Rede e sempre falo pra minha sobrinha. Eu era doente e depois que eu tô nesse grupo, eu não tenho mais tempo para adoecer”. Seu depoimento gerou uma espontânea e radiante salva de palmas, deixando claro que a conquista da Dona Valdemar não era só dela, mas de todos!

Aprofundando um pouco mais o olhar sobre o Indicador Participação dos atores locais em processos decisórios, pergunto ao grupo sobre mudanças nos “espaços de participação”: “Aumentou, porque hoje qualquer dificuldade que a comunidade está passando eles se juntam pra resolver o assunto”, explica Graciela.

Isso soa como uma música para meus ouvidos e posso até ver as conexões entre as pessoas fluindo espontânea e organicamente, ampliando exponencialmente a capacidade coletiva daquelas pessoas em buscarem soluções para suas inquietações, quando Dona Menininha afirma, do alto de seu posto de liderança mais antiga do povoado: “Antes era mais difícil (pra se conseguir as coisas), o movimento de hoje tá mais fácil. Este ano estamos completando três anos de seca, mas graças a Deus tá todo mundo vivo e ninguém tá passando fome e ninguém tá passando por dificuldade”. E quem há de negar? E o clima era de festa e propício para exaltação do lugar que a Rede Social havia alcançado no povoado: “A nossa Rede tá se tornando uma força dentro da comunidade. Porque antes, quando surgia um problema, não sabíamos a quem recorrer. E agora, não”.

Pensando sob a perspectiva do indicador Identificação de novas lideranças, abre-se espaço para uma voz tão surpreendente quanto inesperada de uma nova membra: “Mesmo se não me convidar (para as reuniões) eu vou, porque eu quero participar e saber o que tá acontecendo”. E toda a estratégia parece que precisará ser revista. Apesar da localização aparentemente perdida entre a Bahia e o Piauí, Angico coloca-se no epicentro da cena (ou do mapa?) inspirando e contagiando profissionais da área social que por lá passam e, claro, me enchendo de orgulho. Esteve presente o Sr. Mário do Sebrae e ele rasgou elogios do trabalho realizado na Praça. Tirou foto de todas as coisas que tem aqui pra levar lá pra Salvador, pra capital. Cheios de si, de força e de capacidade, constroem novos sentidos entre os participantes, para a comunidade e nossas vidas.

Considerações Finais

Meu maior aprendizado nessa trajetória no curso de Práticas Colaborativas e Dialógicas, foi que nossa prática deve estar à serviço daquilo que seja útil e generativo, ampliando possibilidades para os envolvidos e, dessa maneira, abrindo mão da “verdade” pela “utilidade”. Quando me dei conta da profundidade dessa postura, fiquei impactada. Hoje estou feliz por perceber que, de fato, o Instituto Lina Galvani vem conseguindo ampliar as possibilidades de sentido social com o seu trabalho. A Rede Social de Angico dos Dias configurou-se não só referência de espaço para discussão e busca por soluções compartilhadas, mas como um recurso terapêutico em si, gerando possibilidades conversacionais interativas e transformação social.

 “O processo de compreensão é resultado de um empreendimento ativo, cooperativo, de pessoas em relação” (Kenneth J. Gergen, 1985).

 

* Cecília Galvani é fundadora e atual diretora executiva do Instituto Lina Galvani.

 


 

Investigação Apreciativa (IA) – Método estruturado por David Cooperider nos anos 1980, tem como foco a busca por descrições linguísticas apreciativas. O facilitador deve pautar sua prática em cinco “posturas”: (1) construcionismo, os relatos sobre o mundo são construções produzidas entre as pessoas; (2) simultaneidade, a pesquisa ou avaliação também é considerada como intervenção; (3) postura poética, enfatiza a maneira como as pessoas conferem autoria a seu próprio universo; (4) antecipatória, a forma como as pessoas refletem sobre o futuro cria a maneira com que elas se encaminham para o mesmo; (5) positiva, o foco de atenção no que é positivo contribui para a possibilidade sincera das pessoas se engajarem no processo de investigação e mudança.

Poética Social – Segundo Carla Guanases e Marisa Japur, em “Contribuições da poética social à pesquisa e psicoterapia em grupo” (2008), John Shotter (1998) enfatiza a importância de uma nova agenda de argumentação em ciência, que possa contribuir com formas de investigação menos comprometidas em explicar o real e mais envolvidas com a tarefa prática de ampliar as possibilidade de sentido social. A pesquisa é caracterizada como um processo vivo de construção e reconstrução de sentidos de mundo, enquanto o pesquisador é considerado parte inseparável do processo de produção de sentidos.

Confiança, traduzido pela qualidade da rede de relações humanas, onde seja possível buscar ajuda caso precise.

Ampliação do Repertório Local, que tenta mensurar a capacidade para buscar e viabilizar soluções individuais e/ou comunitárias e o quanto uma rede saudável de relações contribui para isso.

Participação dos atores locais em processos decisórios, procura saber se os “espaços de participação aumentaram ou diminuíram nos últimos anos”.

Identificação de novas lideranças, que indaga como não pensar o quanto essa força inspira e contribui para o protagonismo dessa comunidade? E sobre uma discussão sobre a melhor ferramenta de comunicação para alcançar e engajar novos participantes.