Por Sergio Andrade*, em “Olhares sobre Desenvolvimento Comunitário – 10 perspectivas do impacto gerado por grandes empreendimentos”**

Desde a Constituição de 1988, teve início um processo de descentralização das políticas públicas. A responsabilidade pela prestação da maioria dos serviços básicos passou a ser feita diretamente pelos municípios. Não obstante, temos uma situação paradigmática: o aumento das responsabilidades convive com a fragilidade institucional observada em grande parte dos municípios.

O novo quadro institucional das políticas públicas do país, a partir dos anos 2000, orientado para maior oferta de bens públicos, especialmente em áreas como saúde, educação, assistência social, emprego, habitação, saneamento, infraestrutura e direitos humanos, enfrentou parte do problema ao confrontar lacunas da ação do Estado na produção de políticas e no seu financiamento. As medidas nacionais tornaram ainda mais imperativa a necessidade de fortalecer os governos locais, de maneira que possam acessar recursos existentes em diferentes fontes de financiamento federais, mas, principalmente,para que possam qualificar sua atuação, estruturando-a a partir de objetivos, metas e indicadores definidos, com projetos bem concebidos e equipes mais qualificadas.

Esse foi o contexto sob o qual se produziu a parceria entre a Agenda Pública e a Anglo-American. Sob o guarda-chuva de uma atuação mais sistêmica, a nova planta da mineradora em Goiás, investimento da ordem de US$ 1,9 bilhão para a extração de níquel na região de Barro Alto, procurou apresentar respostas para as incertezas associadas à instalação de grandes empreendimentos em territórios em que a atuação do Estado é marcada por serviços públicos de baixa qualidade e cultura política clientelista. Com pouco mais de 8 mil habitantes à época, Barro Alto está localizado a aproximadamente 200 quilômetros de Brasília e a igual distância de Goiânia. De tradição agropecuária, apresentava características administrativas semelhantes à grande parte dos pequenos municípios brasileiros, profissionalização do serviço público inadequada, tradição conservadora com pouca participação da população nos assuntos de interesse público, alta dependência das transferências da União, infraestrutura urbana deficiente e serviços públicos de baixa qualidade.

Como tipicamente ocorre na instalação de projetos dessa natureza, externalidades são esperadas e podem agravar a precária situação administrativa existente, provocando saturação dos serviços públicos graças a fenômenos migratórios transitórios ou permanentes, agravamento do quadro de segurança pública associado ao maior consumo de drogas lícitas e ilícitas e à criminalidade, além de problemas relacionados à prostituição ou mau uso do dinheiro público gerado com os novos tributos arrecadados. Não bastassem as potenciais adversidades, também é sabido que a mineração é uma atividade que tende a favorecer concentração de renda e cujos resultados financeiros, caso não sejam bem administrados, não trarão contribuições para o desenvolvimento dos territórios em termos econômicos e de bem-estar para sua população. Portanto, a organização de uma estratégia que minimize os problemas iminentes e potencialize os resultados e oportunidades é fundamental no processo de instalação dos empreendimentos com essa característica. Esses objetivos uniram a Anglo-American e a Agenda Pública. Como organização da sociedade civil voltada para o fortalecimento institucional e desenvolvimento das capacidades do setor público, com atuação também para qualificar a participação social, a Agenda Pública iniciou o trabalho em Barro Alto, a partir de 2010, orientada pela estratégia de fortalecer o capital social, a participação e o controle social e desenvolver capacidades de planejamento, diagnóstico, diálogo, monitoramento e implementação de políticas públicas.

Mas, afinal, uma empresa tem responsabilidades no fortalecimento de políticas públicas? Se o pressuposto é de que não existem empresas prósperas sem comunidades que também se beneficiem desses ganhos, devemos dizer que sim. Além disso, a experiência demonstra que a única maneira de produzir mudanças significativas e estruturantes que tragam melhorias nas condições de vida da população é por meio de políticas que mirem a ampliação de serviços e bens públicos. Com isso, as condições gerais de desigualdade ao nível regional e individual podem ser afetadas positivamente. A resposta, porém, tem outras dimensões. A preocupação em realizar investimentos para fortalecer uma governança para o desenvolvimento também tem como foco mitigar as externalidades associadas aos empreendimentos de grande porte. Como instituição responsável pelos serviços sociais básicos e pela infraestrutura urbana, a prefeitura, portanto, deve ser objeto de atenção, pois sua capacidade institucional reflete diretamente na qualidade do serviço público municipal. Também é importante lembrar que o poder público detém a legitimidade, os meios de implementação e também acesso a recursos que vão além de qualquer capacidade de investimento por parte do setor privado para enfrentar desafios sociais complexos, os quais, tampouco, refletem seu papel.

A partir desse entendimento comum, o trabalho da Agenda Pública se baseou no apoio à ampliação da oferta e da qualidade dos serviços públicos e na reestruturação dos canais de participação social. Essa orientação buscou respaldo na construção de um plano de trabalho que respeitasse prioridades políticas, demandas e interesses da prefeitura, e definiu-se após um diagnóstico das capacidades institucionais do poder público e dos conselhos estruturado a partir dos eixos liderança, planejamento, processos, gestão de pessoas, gestão de informações, cidadania e controle social. O resultado transformou-se no texto do convênio que deu reconhecimento institucional ao trabalho. Esse documento prevê a aprovação de um plano de trabalho anual, por meio do qual as prioridades são revistas e os compromissos revisitados e fortalecidos. Ao mesmo tempo, um fator de sucesso importantíssimo para criar um ambiente de confiança e cooperação que permitisse o acesso a informações e o cumprimento dos compromissos pactuados foi a instalação de uma base operacional no município. Além de experimentar a realidade local, a convivência contribuiu para que não fôssemos identificados como um consultor que diz o que o município deve fazer. Partilhar os problemas e o ambiente social foi uma forma de demonstrar que estávamos comprometidos com o município, um caminho para que nossas sugestões fossem ouvidas pelos agentes públicos.

Criadas as condições institucionais e operacionais para o trabalho, o programa de Fortalecimento Institucional e Participação, como foi posteriormente institucionalizado pela organização, definiu como prioridade o apoio ao planejamento estratégico do município e a criação de planos setoriais para áreas-chave da administração (saúde, educação, assistência social, habitação e em seguida também desenvolvimento econômico). Tendo em vista as competências necessárias para a implementação/execução das atividades descritas nos documentos de planejamento, seria necessário ainda fortalecer de forma consistente as capacidades institucionais da administração municipal. Essa orientação é fundamental para que a capacidade de resolver problemas possa se desenvolver no interior da administração. Para isso, prevíamos dois caminhos: a criação de uma Escola de Governo e a preparação de um grupo, organizado por meio de um gabinete de projetos, que pudesse acompanhar o planejamento e dar suporte à obtenção dos recursos necessários às ações previstas.

A criação de uma Escola de Governo envolvendo tanto a prefeitura quanto a câmara municipal contou com apoio pedagógico específico da Agenda Pública, que se utilizou de técnicas de aprendizagem focadas na construção de conhecimento por parte de adultos (andragogia), nas quais o diálogo com a experiência de agentes públicos e o uso de situações concretas do seu dia a dia constituem ferramentas didáticas importantes. O gabinete de projetos é responsável pelo apoio à administração como um todo no que diz respeito à elaboração de projetos com vistas à captação de recursos junto a outras esferas da administração pública. Entre suas responsabilidades também está o acompanhamento executivo dos planos estratégico e setoriais. Sua estrutura e constituição são determinadas por meio de decreto, e entre suas funções também constam a realização de estudos e recomendações quanto a regulamentos, processos e normas para melhorar a administração, facilitando a coordenação governamental. Essas ações se fizeram acompanhar de um trabalho ativo de articulação, formação e comunicação para envolver, mobilizar e preparar a população para a atuação nos conselhos e em outros espaços de participação, incluindo associações de moradores, conferências e associações temáticas (idosos, deficientes, jovens etc.).

Após cinco anos, o programa conta com resultados concretos em várias frentes, entre elas na área de participação em que é possível perceber as consequências mais satisfatórias, com a qualificação de todo ecossistema de participação, desde as associações até os conselhos e conferências. Em termos de gestão pública, por outro lado, o aumento do número de recursos financeiros disponíveis, a criação de canais de transparência e a estruturação de equipes de suporte à execução do planejamento são os resultados mais consistentes. A experiência também resultou em seis publicações com referências conceituais, ferramentas de planejamento público, orientações metodológicas para o trabalho com conselhos e para a gestão de Escolas de Governo.

* Sergio Andrade é diretor-executivo da Agenda Pública, mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas (FGV/ EAESP), cientista social pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Negociações Internacionais pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). Possui 15 anos de experiência na área governamental e no setor privado, incluindo trabalhos em todo o país e no exterior. 

** Publicação, organizada pelo Instituto Lina Galvani, aborda o desenvolvimento territorial sob diferentes perspectivas, por meio de artigos ou cases assinados por especialistas e envolvidos com o tema, convidando à continuidade da reflexão. Acesse a versão completa online da publicação.