por Ladislau Dowbor

Uma nova visão está entrando rapidamente no universo da educação, de que os alunos, além do currículo tradicional, devem conhecer e compreender a realidade onde vivem e onde serão chamados a participar como cidadãos e como profissionais. O desenvolvimento moderno necessita cada vez mais de pessoas informadas sobre a realidade onde vivem e trabalham. Não basta ter estudado quem foi D. João VI, se não conhecemos a origem ou as tradições culturais que constituiram a nossa cidade, os seus potenciais econômicos, os desafios ambientais, o acerto ou irracionalidade da sua organização territorial, os seus desequilíbrios sociais. Pessoas desinformadas não participam, e sem participação não há desenvolvimento. O envolvimento mais construtivo do cidadão se dá no nível da sua própria cidade e dos seus entornos, na região onde cresceu, ao articular-se com pessoas que conhece diretamente e instituições concretas que fazem parte do seu cotidiano. Trata-se de fechar a imensa brecha entre o conhecimento formal curricular e o mundo onde cada pessoa se desenvolve. Numerosas experiências deste tipo estão se multiplicando no Brasil, e o presente capítulo visa facilitar a compreensão do processo.

Desenho feito por Laurineide de Sousa, membro da rede social de Angico, em atividade de Educomunicação - abr/2012

A região de São Joaquim, no sul do Estado de Santa Catarina, era uma região pobre, de pequenos produtores sem perspectiva, e com os indicadores de desenvolvimento humano mais baixo do Estado. Como outras regiões do país, São Joaquim, e os municípios vizinhos, esperavam que o desenvolvimento “chegasse” de fora, sob forma do investimento de uma grande empresa, ou de um projeto do governo. Há poucos anos, vários residentes da região decidiram que não iriam mais esperar, e optaram por uma outra visão de solução dos seus problemas: enfrentá-los eles mesmos. Identificaram características diferenciadas do clima local, constataram que era excepcionalmente favorável à fruticultura. Organizaram-se, e com os meios de que dispunham fizeram parcerias com instituições de pesquisa, formaram cooperativas, abriram canais conjuntos de comercialização para não depender de atravessadores, e hoje constituem uma das regiões que mais rapidamente se desenvolve no país. E não estão dependendo de uma grande corporação que de um dia para outro pode mudara de região: dependem de si mesmos.

Esta visão de que podemos ser donos da nossa própria transformação econômica e social, de que o desenvolvimento não se espera mas se faz, constitui uma das mudanças mais profundas que está ocorrendo no país. Tira-nos da atitude de espectadores críticos de um governo sempre insuficiente, ou do pessimismo passivo. Devolve ao cidadão a compreensão de que pode tomar o seu destino em suas mãos, conquanto haja uma dinâmica social local que facilite o processo, gerando sinergia entre diversos esforços.

 A idéia da educação para o desenvolvimento local está diretamente vinculada a esta compreensão, e à necessidade de se formar pessoas que amanhã possam participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas. Hoje, quando se tenta promover iniciativas deste tipo, constata-se que não só os jovens, mas inclusive os adultos desconhecem desde a origem do nome da sua própria rua até os potenciais do subsolo da região onde se criaram. Para termos cidadania ativa, temos de ter uma cidadania informada, e isto começa cedo. A educação não deve servir apenas como trampolim para uma pessoa escapar da sua região: deve dar-lhe os conhecimentos necessários para ajudar a transformá-la.

Numa região da Itália, visitamos uma cidade onde o chão da praça central era um gigantesco baixo-relevo da própria cidade e regiões vizinhas, permitindo às pessoas vizualizar os prédios, as grandes vias de comunicação, o desenho da bacia hidrográfica e assim por diante. Entre outros usos, a praça é utilizada pelos professores para discutir com os alunos a distribuição territorial das principais áreas econômicas, mostrar-lhes como a poluição num ponto se espalha para o conjunto da cidade e assim por diante. Há cidades que elaborarm um atlas local para que as crianças possam entender o seu espaço, outras estão dinamizando a produção de indicadores para que os problemas locais se tornem mais compreensíveis, e mais fáceis de serem incorporados no curriculo escolar. Os meios são numerosos e variados, e os detalharemos no presente texto, mas o essencial é esta atitude de considerar que as crianças podem e devem se apropriar, através de conhecimento organizado, do território onde são chamadas a viver, e que a educação tem um papel central a desempenhar neste plano.

Há uma dimensão pedagógica importante neste enfoque. Ao estudarem de forma científica e organizada a realidade que conhecem por vivência mas de forma fragmentada, as crianças tendem a assimilar melhor os próprios conceitos científicos, pois é a realidade delas que passa a adquirir sentido. Ao estudar, por exemplo, as dinâmicas migratórias que constituiram a própria cidade onde vivem, as crianças tendem a encontrar cada uma a sua origem, segmentos de sua identidade, e passam a ver a ciência como instrumento de compreensão da sua própria vida, da vida da sua família. A ciência passa a ser apropriada, e não mais apenas uma obrigação escolar.

Globalização e desenvolvimento local  

Quando lemos a imprensa, ou até revistas técnicas, parece-nos que tudo está globalizado, só se fala em globalização, no cassino financeiros mundial, nas corporações transnacionais. A globalização é um fato indiscutível, diretamente ligado a transformações tecnológicas da atualidade e à concentração mundial do poder econômico. Nas nem tudo foi globalizado. Quando olhamos dinâmicas simples, mas essenciais para a nossa vida, encontramos o espaço local. Assim, a qualidade de vida no nosso bairro é um problema local, envolvendo o asfaltamento, o sistema de drenagem, as infraestruturas do bairro.

Este raciocínio pode ser extendido a inúmeras iniciativas, como a de São Joaquim citada acima, mas também a soluções práticas como por exemplo a decisão de Belo Horizonte de tirar os contratos da merenda escolar da mão de grandes intermediários, contratando grupos locais de agricultura familiar para abastecer as escolas, o que dinamizou o emprego e o fluxo econômico da cidade, além de melhorar sensivelmente a qualidade da comida – foram incluídas cláusulas sobre agrotóxicos – e de promover a construção da capital social. Dependem essencialmente da iniciativa local a qualidade da água, da saúde, do transporte coletivo, bem como a riqueza ou pobreza da vida cultural. Enfim, grande parte do que constitui o que hoje chamamos de qualidade de vida não depende muito – ainda que possa sofrer os seus impactos – da globalização, depende da iniciativa local.

A importância crescente do desenvolvimento local encontra-se hoje em inúmeros estudos, do Banco Mundial, das Nações Unidas, de pesquisadores universitários. Iniciativas como a que mencionamos acima, vêm sendo estudadas regularmente. O Programa Gestão Pública e Cidadania, por exemplo, desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, tem cerca de 7.500 experiências deste tipo cadastradas e estudadas. O Cepam, que estuda a administração local no Estado de São Paulo, acompanha centenas de experiências. O Instituto de Administração Municipal (IBAM) do Rio de Janeiro acompanha experiências no Brasil inteiro, como é o caso de Instituto Pólis, da Fundação Banco do Brasil que promoveu a Rede de Tecnologias Sociais e assim por diante.

É interessante constatar que quanto mais se desenvolve a globalização, mas as pessoas estão resgatando o espaço local, e buscando melhorar as condições de vida no seu entorno imediato. Naisbitt, um pesquisador americano, chegou a chamar este processo de duas vias, de globalização e de localização, de “paradoxo global”. Na realidade, a nossa cidadania se exerce em diversos níveis, mas é no plano local que a participação pode se expressar de forma mais concreta.

A grande diferença, para municipios que tomaram as rêdeas do próprio desenvolvimento, é que em vez de serem objetos passivos do processo de globalização, passaram a  direcionar a sua inserção segundo os seus interesses. Promover o desenvolvimento local não significa voltar as costas para os processos mais amplos, inclusive planetários: significa utilizar as diversas dimensões territoriais segundo os interesses da comunidade.

Há municípios turísticos, por exemplo, onde um gigante do turismo industrial ocupa uma gigantesca área da orla marítima, joga a população ribeirinha para o interior, e obtém lucros a partir da beleza natural da região, na mesma proporção em que dela priva os seus habitantes. Outros municípios desenvolveram o turismo sustentável, e aproveitam a tendência crescente da busca de lugares mais sossegados, com pousadas simples mas em ambiente agradável, ajudando, e não desarticulando, as atividades pre-existentes como a pesca artesanal, que inclusive se torna um atrativo. Tanto o turismo de “resorts” como o turismo sustentável participam do processo de globalização, mas na segunda opção há um enriquecimento das comunidade, que continua a ser dona do seu desenvolvimento.

Com o peso crescente das iniciativas locais, é natural que da educação se espere não só conhecimentos gerais, mas a compreensão de como os conhecimentos gerais se materializam em posssibilidades de ação no plano local.

Artigo publicado no site http://dowbor.org/. Continue sua leitura aqui.